LEITURAS TARDIAS

"AD APERTURAM LIBRI"

quinta-feira, 26 de julho de 2007

"POEMANÁLISE" para Gastão Gruz (1941)

“Sempre ali esteve, a música”, mas na “Rua de Portugal” a música exalta a tristeza, o momento, o vergel da adolescência ida de tudo.
“Retratos”, “Rua de Portugal e Outros Lugares”, “O Vocábulo Tempo”, “A Norma da Desordem”, quatro títulos, ou quatro partes, de um mesmo livro que pode ser lido em quatro tempos, ou a quatro tempos, por quatro mãos.
Descemos a escada até à nossa habitual livraria de poesia, circulamos em torno da ampla bancada das novidades, compramos o livro de um ídolo, e vamos dali para o bar beber um café e dissecar os orgulhosos poemas.
Indo de página em página jogamos o jogo das sínteses e resumimos os poemas, encontrando-lhes o sentido nosso, e assim dizemos: ausente esvaído amante; esvaído esperma em miragem masturbada; na luminosa tarde da Toscânia; comunicando mentiras entretidas; a vida presa ao papel que nem a morte rasga; o desejo é sentido mágico; boca dada à leitura do poema; tem o nome solto na noite; meu amor de pernas abraçando; o calor traiçoeiro doutro Inverno esclarecido; aleijado só no tempo inútil de o amar; evocar a comunhão de corpos novos; vazia a casa e maré vaza; sombras aparentes prisioneiras da memória; poesia e casa; casa e século; moedas para um pajem infantil; voltar à livraria da poesia e ao café dos poetas; o desejo inominado sobre o esperma de limão; canção do touro e do mastro; o símbolo limão no horto concluso; canção do rouxinol e do banho; “canção dos dias grandes”, a razão dos frutos luminosos; tudo é corpo na vontade adolescente; tudo é sexo na imagem recolhida; a mobília e a família mortas; cinco vagos momentos de viagem; o decénio dos amantes mortos, o leito limpo do medo, a novena das bocas tapadas a algodão; “a morte das palavras”, “o nada das palavras”, “a pátria de palavras”, “o impuro murmúrio”, versos inúteis, “o insecto mártir”, “a roxa flor”, “um vento baixo”, “o caos cenografado”, “o que mudou”, “o rosto”, “o nada”, “uma casa [que] morreu”.
“Sempre ali esteve, a música”, mas na “Rua de Portugal” parece-nos mais dolente, espécie de partitura do envelhecimento, do abandono, da destruição, da doença, da saudade e da morte. Livro que é um requiem. Peça desabrida e estranha na obra do autor.
Ao fundo do bar amarelo da nossa habitual livraria de poesia, bebemos um café e dissecamos os orgulhosos poemas... Lá vai uma lágrima... Lembramos Fiama... “Um procurava a morte obstinado / outro a vida invisível que fugia.”


[Fonte: Imagens - Gastão Cruz. Fotografia no site do ICA. Google. Livro em "análise" - Gastão Cruz, Rua de Portugal. Lisboa, Assírio & Alvim, 2002]

"Sophia e Sena: Correspondência, 1959-1978"

Nas pessoas de Mécia de Sena e de Maria Andresen de Sousa Tavares, devemos agradecer aos herdeiros e às famílias de Jorge de Sena e de Sophia de Mello Breyner Andresen o terem concordado em reunir e em publicar um conjunto epistolar desta qualidade que, não sendo propriamente extenso, mergulha a fundo na personalidade e na amizade existente entre estes dois gigantes da Literatura Portuguesa.
O objecto livro que encerra este espólio, trabalho gráfico e paginação de Luís Miguel Castro e Ilídio J.B. Vasco, com a chancela da editora “Guerra & Paz”, é de uma elegância a referir, o que contribui para o prazer desta leitura.
Menos cuidada foi a revisão de texto e a elaboração do “Índice Onomástico” que acompanha a obra, que não é exaustivo, nem compulsa as várias citações dos mesmos nomes em todos os documentos insertos na obra, o que é pena.
No panorama da Literatura Portuguesa, quer as memórias, quer a correspondência, são géneros pouco cultivados, pouco conhecidos, e menos ainda publicados. Avultam uns tantos casos paradigmáticos, contudo, falta-nos aquele lastro que nos auxiliaria a fundamentar e a compreender a tradição e o verdadeiro efeito de época. Por isto mesmo só devemos apreciar e aplaudir o aparecimento em edição fechada da correspondência trocada ao longo de 19 anos entre Jorge de Sena (1919-1978) e Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004).
Passando em revista o conjunto das cartas dadas a público, desde logo ressaltam seis principais aspectos que vale a pena sublinhar:

1) A correspondência captura a realidade do regime político vigente à época, com a polícia política a interferir no curso das missivas entre os dois amigos, levando, inclusive, à perda de algumas cartas, e condicionando a liberdade de expressão de ambos, sendo manifesto o mútuo cuidado em evitar opiniões comprometedoras, chegando Sophia a dar notícia de arresto de correspondência em sua casa.

2) A troca epistolar é caracterizada por um largo espaçamento, quase intermitência, do envio/troca de correspondência, já que não se trata de uma comunicação assídua e harmoniosa, mas trata-se de uma “comunicação dionisíaca”, “elegante”, assumidamente impetuosa, e bastante centrada no ego de cada autor. Basta considerar que, por vezes, num ano, apenas foi expedida uma carta (Sophia – 1965, 1967, 1969, 1970, 1971, 1976; Sena – 1960, 1961, 1963, 1964, 1965, 1968, 1970), ou que, por vezes, anos inteiros são corridos sem que tenham sido expedidas/recebidas cartas (Sophia – 1968, 1973 a 1976, 1977; Sena – 1967, 1973-1976, 1977-1978). Em todo o caso, Sophia parece ser mais insistente e mais regular no envio de correspondência, apesar de ela mesma assumir a falta de tempo, a falta de energia e a falta de serenidade para se dedicar à escrita.

3) Apesar das condicionantes impostas pela situação interna do País, e apesar das condicionantes e das limitações impostas pelo curso da vida pessoal e familiar de cada autor, a correspondência segue o seu curso, espaçada (como atrás dito), mas sem perder o ânimo, nem a “energia atómica” que a gerou − a da amizade séria e pura. Os dois amigos persistem na troca de correspondência, brincando até com as notadas delongas, atrasos e desencontros, procurando comunicar os seus valores mais altos e deixar por terra a ignomínia e as mesquinharias do “caso mental português”. Por isso, lendo estas cartas, aqui e além, deparamos com apontamentos negativos, mas, na maior parte dos casos, Sophia e Sena comunicam em grande estilo sobre temas e sobre assuntos que apenas à esfera da escrita dizem respeito, manifestando um sincero alheamento face aos quotidianos português, brasileiro e americano.

4) Em verdade, quer Sophia, quer Sena, estão sobretudo interessados em partilhar notícias acerca das suas respectivas obras, estão interessados em manter acesa a chama da amizade poética, mais do que interessados em dar notícias pessoais de si ou dos seus. As referências às casas, aos esposos e às respectivas famílias, se bem que sejam constantes, sentimos que não estão no centro, e sentimos que esta é uma correspondência entre dois seres superiores, brilhantes, que comunicam num discurso singular, onde o não dito vale pelo dito e vice-versa. Há mesmo uma reserva da intimidade, escusada apenas em expressões cerimoniosas e de cortesia como saudações e cumprimentos, etc. É até curioso constatar como Sophia se insurge contra Sena pelo facto de Sena ter “sugerido” que ela e marido formavam um “casal conspícuo” (Sena - carta datada de 2 de Dezembro de 1971, op. cit. pp.119-122; Sophia – carta datada de Fevereiro de 1972, op. cit. pp.122-124).

5) Sena é senhor da grandeza e da dignidade da sua obra literária. Está perfeitamente consciente que os seus trabalhos de investigação, que as suas traduções e que o seu esforço em prol da divulgação da cultura portuguesa lhe deviam garantir preeminência. É muito isso que transparece no modo altivo como critica a classe dos “eruditos nacionais”, ou no modo displicente como vai dando notícia dos títulos que tem no prelo, ou dos trabalhos que tem em mãos, etc. Ainda aqui se prova a alta temperatura da amizade existente entre estes dois autores já que Sophia não acusa algum melindre e é sempre leal para com o seu amigo.

6) Sophia, por sua vez, é tenaz na defesa do seu classicismo e do seu ideário grego, contestando Sena, impondo-lhe a verdade formada pela experiência das suas viagens à Grécia, defendendo valores numa escala humana por oposição à espiritualidade de Sena. Nesta matéria Sophia não se deixa intimidar pela genialidade do grande mestre que é Sena. Critica-o, e critica-lhe o curso das letras quando sente que Sena aponta caminhos áridos de crítica social, apenas por azedume. Sophia é sempre igual a ela mesma, genial, sintética, apaixonada, limpa, de palavra luminosa, e é por isso que sofre como ninguém o apagamento do seu amigo em 1978. Sophia parece saber que, com a morte de Sena, o Mundo ficava mais estreito para ela.

Portanto, esta é uma correspondência muito bela, plena de ensinamentos, plena de bom-nome e sã memória.

[Fonte: Imagem – Capa do livro Sopia de Mello Breyner e Jorge de Sena, Correspondência: 1959-1978. Lisboa, Guerra & Paz, 2.ª ed., 2006. Google]

"África minha" de Eduardo Pitta (1949)

Um cão de angústia progride / na cidadela sitiada / enquanto te demoras / no sorvo / no arquejo largo / no topo da saliva / enquanto te entreabro / as pernas altas / enquanto de humedeço / o musgo tenro / para te ferir com a boca / cheia de vidro moído (Eduardo Pitta, “Enquanto Te Demoras”, in Sião. Lisboa, Frenesi, 1987; p.167).

Desde 1987 que este níveo poema de Eduardo Pitta me acompanha porque nele se adianta todo um vagar de vivências e de experiências que não é muito comum descortinar em poesia.
Poema de uma fase antiga (data de 1979), é pela própria voz do seu autor classificado como destoando de uma unidade orgânica conseguida depois de 1984 com a publicação do título Olhos Calcinados (op. cit. p.167).
Sempre me importou pouco a anotação sobre os poemas. Sempre escolhi ler e reter os poemas que me fizeram vibrar em um dado momento. É o caso deste poema, primeira janela para um tal vagar.
Passaram anos sem que procurasse outras leituras deste autor. Só mais recentemente voltei a Eduardo Pitta, quer nas suas crónicas em periódicos, quer nas suas intervenções na Casa Fernando Pessoa, quer no seu
www.daliteratura.blogspot.com.
Portanto, foi à procura de algo que decidi adquirir na Feira do Livro de Lisboa os títulos Persona e Cidade Proibida, ambos editados pela Quidnovi, com uma qualidade gráfica inquestionável.
Não venho agora dizer nada de novo a propósito destes dois textos, até porque outros mais competentes já o fizeram, nomeadamente, Helena Vasconcelos que, no suplemento Ípsilon, do Público, nos deu uma crítica certa e segura sobre o alcance destas obras e o trabalho do autor.
A mim, apetece-me muito mais deixar fluir os raciocínios ao sabor dos sentimentos, sem querer com isto valorizar, ou desvalorizar, cada uma das obras.
Cidade Proibida, romance publicado em 2007, assume-se como história de género, trama actual e familiar a decorrer em ambientes luxuosos de uma certa estirpe. O romance toca nas feridas de todo o Amor, no caso, recortando ainda a delicadeza e o melindre do Amor homossexual, habitualmente vivido “às escuras”.
A propósito da relação entre Martim e Rupert (tema central do romance), o autor visita os lugares comuns da hipocrisia social e da rotina sexual de todas as famílias (porque em todas as famílias há dessas coisas). A qualidade da escrita de Eduardo Pitta é ainda enriquecida pelo toque psicológico que consegue instilar em cada personagem, atirando o leitor para o drama patológico dos vários casos (Nora e a compreensão/conivência de Nuno Lemos Fortunato; Rupert e aquela forma de “incesto”/”abuso”/”iniciação”/”atracão” exercida por Mark; etc.).
É um “romance estético” que podemos associar a uma certa tendência de escrita actual e cosmopolita (David Leavitt, Bret Easton Ellis, Frederico Lourenço, etc.), que valoriza ao mesmo tempo a economia no relato da acção e o requinte barroco na descrição de ambientes, adereços, peças-âncora, peças-símbolo na construção do universo em estudo (no caso, o universo “gay” e elitista de Lisboa).
Persona (1.ª edição em 2000), é uma história repartida em três contos, onde um mesmo personagem evolui ao fiar do tempo “cronológico” e “escatológico”, crescendo na sua identidade, crescendo para as suas opções, crescendo sem cair no ridículo da triste sociedade que o rodeia, a mesma sociedade em fim de festa colonial.
À semelhança daquilo que já havia sentido em relação aos trabalhos poéticos de Eduardo Pitta, também agora me senti mais atraído por este título do que pelo anterior. Por vezes, quase senti que o autor foi mais feliz e original na construção destes contos/romance do que na imaginação da Cidade Proibida.
Há uma verdade pura e didáctica nos três andamentos desta obra, e há uma paixão (desculpem-me, prefiro dizer tensão/tesão), em crescendo, e que culmina nas vésperas do descalabro com a entrega de José à “felicidade arco-íris”, uma vez passado à peluda.
Em Kalahari, fazemos a viagem da entrega total, que passa pela fuga, pelo jogo do ciúme e pela submissão à majestade do deserto e à força física de Ralph Rylands.
Em Pesadelo, é o embuste do sistema que é evidenciado. O colonialismo português já nada mais podia numa terra revoltada, e a bela sociedade gozava o lirismo de se saber superior e livre num território imenso e matricial, semelhante ao da atracção dentro do mesmo sexo, onde a possibilidade e o prazer derivam da oportunidade e da solidão (sensações amplificadas em África).

[Fonte: Imagem – Reprodução da capa do livro de Eduardo Pitta, Cidade Proibida. Lisboa, Quidnovi, 2007. Google]

Pelos "Campos de Níjar", com Juan Goytisolo (1931)

Se tivesse que caracterizar o sul em três palavras citaria seguramente as barbearias, junto às crianças e às moscas (Juan Goytisolo, Campos de Níjar. Barcelona, Mondadori, 1993; p.61). É com esta claridade e com esta dureza que o escritor resume os sentimentos experimentados durante a sua viagem pelo sul de Espanha, num perímetro delimitado pelos lugares de Almería, Níjar, Carboneras, Las Negras, Rodalquilar, Morrón de los Genoveses e El Cabo de Gata, nos idos de 1959.
Nesta espécie de “diário de viagem” Goytisolo traça em riscos largos o retrato de uma Espanha quixotesca, que sabemos, felizmente, mudada há muito.
Apaixonado pela paisagem árida, inóspita e grandiosa desta terra lunar e infernal, povoada de lugarejos sujos, poeirentos e esquecidos, Goytisolo busca a poética do Sul e o imaginário daquelas nobres gentes exploradas e esperançosas.
Em quadros de abandono e de miséria consentida e calada, o autor, descreve o dia a dia da vertiginosa carreira à boleia pelas estradas sinuosas, onde a meio do nada, pintadas sobre o ocre dos muros derrubados, o assaltam as palavras de propaganda do regime franquista ao "Generalíssimo" (op. cit. P.22).
Estranha e ritual é esta peregrinação de um catalão exilado em França que se dispõe a descer ao sul para mergulhar nas aventuras e desventuras do povo que ali resiste e que se sente escravo do tempo que parece que não passa, que sofre a secura transtornada por chuvadas de lama, e que aceita o “feudalismo” ainda ali prevalecente e que tinha nos “civis”, nas “brigadas”, nos “curas”, nos “amos”, nos “patrões” os pilares da “ordem estabelecida”.
Num registo algo semelhante ao de Jack Kerouac (1922-1969), também Goytisolo faz o seu percurso “on the road”, se bem que não há romance nestas páginas, e o discurso não é feito de costa a costa no casulo fechado de um drama interior. Pelo contrário, Goytisolo é muito mais o antropólogo que mergulha num modelo social arcaico e cristalizado.
Goytisolo não viaja em demanda do descanso ou do prazer, não viaja em demanda das praias paradisíacas do Golfo de Almería, procura, outrossim, internar-se nos segredos dessa humanidade que frutifica nos antípodas da Europa do norte e do meio-dia, onde a Liberdade e o Progresso eram dados assumidos à época.
Por isso, é com tristeza e descrédito que Goytisolo ironiza a propósito da “célebre teoria da revolta de massas” do grande Ortega y Gasset, já que este ilustra a sua teoria a partir da “revolta de Níjar”, ocorrida a 13 de Setembro de 1759, quando Carlos III subiu ao trono de Espanha. Para Ortega y Gasset, a esse povo revoltado pertenceria sempre a Liberdade.
Contudo, era outra e bem diferente situação a que se vivia por ali em 1959. Não, o povo não tem mais remédio que resignar-se, porque a iniciativa da mudança, como a atitude magnânima, foram, e serão sempre, apanágio das minorias [das elites] (op. cit. pp.56-57).
Desta forma, embora “a salto”, “à boleia”, solitário e desprendido, Goytisolo progride na viagem e no relato com uma atinada lucidez política, deixando-nos viajar com ele através do universo caloroso do sul, através dos povoados luminosos, deixando-nos participar na fábula humilde, mas violenta, dos homens com quem cruzou diálogo.
Para a posteridade ficou este relato autêntico de um lugar e de um tempo que já então parecia absurdo.
Ler este livro é confirmar a História que parece mentira, é recuperar a memória e acordar a consciência, porque nada do temos é seguro ou adquirido.
A cama é boa para quem tem o estômago cheio e sabe que no dia seguinte não haverá de lhe faltar o necessário, podendo ir de um sítio a outro sem ser escravo em nenhum, e ver as coisas de fora, como um espectador alheio ao drama (op. cit. P.57).

[Fonte: Imagem – Juan Goytisolo. Fotografia de Sergio Caro. Google]

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Arménio Vieira na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, em 2007


Ao organizar os apontamentos para me lançar na redacção desta breve crónica dou comigo a lembrar-me de imagens soltas, profundamente poéticas, que me fazem sentir melhor a especialidade de um dos poemas que o poeta Arménio Vieira leu na Casa Fernando Pessoa, no passado dia 26 de Junho, precisamente, o poema “Lisboa − 1971”.
Quando em criança viajava para a aldeia dos meus avós, certo era que a partir de Coimbra, e por toda a estrada da Beira, a minha mãe, emocionada com a fundura da paisagem, ia dizendo ao acaso: “ditosa pátria minha amada”. Havia e há neste verso força capaz de congregar uma nação.
Eu creio que a “Lusofonia” é sobretudo um território de sentimento (a par da Língua), mais do que um território de conhecimento mútuo.
Sejamos francos! Quantos de nós conhecemos o essencial da Poesia de cada espaço lusófono? Quantos de nós conhecemos as novas vozes presentes nesses espaços, ou aquelas vozes tutelares responsáveis pela transmissão das bandeiras de cada geração? Poucos. Muito poucos.
Afirmo isto, admitindo desde já que eu próprio, viajante em Cabo Verde, para além da obra de Eugénio Tavares, António Pedro, Jorge Barbosa, Germano Almeida e José Luís Tavares conheço quase nada.
Arménio Vieira apareceu-me como uma revelação. Poeta nos modos e nos gestos, sobremaneira silencioso, metido consigo mesmo, na Casa Fernando Pessoa sustentou um debate curioso em torno das questões identitárias que se colocam à actual Literatura Cabo-verdiana, dando resposta pronta àqueles que o interpelaram.
Nascido na cidade da Praia (ilha de Santiago, Cabo Verde), em 29 de Janeiro de 1941, Arménio Vieira cresceu e fez-se homem sob a égide do “império”, para se afirmar depois como bandeira da independência de Cabo Verde, tido por modelo para o conjunto dos poetas mais novos, maioritariamente, residentes fora daquele Arquipélago.
Em simples pinceladas direi que a poesia de Arménio Vieira traduz esta mesma realidade existencial: combativa, ácida, paternal numa primeira fase; desencantada, vaga, irónica, universal (fazendo sua a espiritualidade atlântica e mediterrânica), num tempo em que, conquistada a independência, mesmo assim não foram quebrados todos os grilhões, os mais pesados, “aqueles que são postos pelos de dentro”.
Infelizmente a obra deste poeta não está acessível em Portugal, já que existem poucos títulos disponíveis. Em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa, era para ter sido apresentado o último título de Arménio Vieira, Mitografias, editado pela Ilhéu Editora, mas, por razões alheias os exemplares do livro não chegaram a tempo de o mesmo ser apresentado ao público.
Então, adquiri o livro Poemas, obra reeditada pela Ilhéu Editora, onde li pela primeira vez este poeta, defrontando-me com poemas marcantes como “Toti Cadabra” (pp.14-15), “Lisboa − 1971” (p.17), “Os Amorosos” (p.40), “Viagem, Rima e Fantasia” (pp.44-45), “Caviar, Champanhe & Fantasia” (pp.46-48),”Sísifo” (pp.65-66), “Glosa ao Poema de Passarem Aves” (p.105), “Se…?” (p.119), além de outros.
De todos estes poemas alcançou-me, como disse, o poema “Lisboa − 1971”, sobretudo a quadra que diz:
(…) E quando mais tarde surpreendemos o espanto / da mulher que vendia maçãs / e queria saber d’onde… ao que vínhamos / descobrimos o logro a circular no coração do Império. (…).
Alcançaram-me estes versos talvez porque também eu, noutro tempo, habitei em outras “latitudes do império”.
Mas este poema, assim o desejo, é um poema triste e datado. Datado de um tempo em que as línguas se confundiam como na Babilónia. Hoje, assim o desejo, vale muito mais a “mensagem” de Fernando Pessoa quando expressa nos poderosos versos do poema “O Infante”:
(…) Quem te sagrou creou-te portuguez. / Do mar e nós em ti nos deu signal. / Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal! (Fernando Pessoa, “O Infante”, in Mensagem. Lisboa, Ática, 1945; p.51).
Pois, em vozes distintas, e em tempos diversos, surge-nos o tema do “império”, que nestas poéticas, e na nossa leitura, não é o “império de posse e de domínio” mas o “império da Língua comum”, da Língua que deveríamos cuidar em comum, verdadeiro talismã para os tempos mais difíceis que hão-de vir.
Deste modo, a realização desta “Quinzena da Cultura Cabo-verdiana” na “casa de Fernando Pessoa” foi de todo pertinente e ajudou à construção de uma dimensão superior já que embora de Múltiplas folhas, o poema é só um (Arménio Vieira, “Hai-Kais”, 5, in Poemas. Mindelo, Ilhéu Editora, 1998; p.121).

Bibliografia de Arménio Vieira:
Poemas. Lisboa, África Editora, 1981.
O Eleito do Sol. Praia, Edição Sonacor, 1990.
Poemas [reedição]. Mindelo, Ilhéu Editora, 1998.
No Inferno. Praia e Mindelo, Centro Cultural Português, 1999.
Mitografias. Mindelo, Ilhéu Editora, 2005.


[Fonte: Imagem – Arménio Vieira tomando uma bica no café Cachito, Praia. Fotografia de Conde. Google]

terça-feira, 24 de julho de 2007

Maria Antonieta vista por Antonia Fraser e Évelyne Lever

Acabei de ler Maria Antonieta: A Viagem de Antonia Fraser, livro que serviu de guião ao último filme de Sofia Coppola, onde nos é dado o retrato romanceado, contudo histórico e interpretativo, dessa grande e trágica rainha de França.
Quero salientar a qualidade gráfica da edição portuguesa que apareceu em Fevereiro de 2007 na colecção "Mar de Histórias" da "Oceanos", uma chancela da ASA Editores.
Quero salientar, igualmente, a tradução de Irene e Nuno Daun e Lorena que não desvirtua a escrita solta e fluida da autora, mantendo a delicadeza e alegria reflexiva do discurso.
Menos cuidada foi a revisão do texto, já que, por aqui e por ali, aparecem umas gralhas que maculam de menos o todo, e é pena.
Em verdade, vi o filme com grande interesse e, por mim, apreciei bastante a abordagem feita por Sofia Coppola. Depois, li a crítica editada por Paulo Portas, peça de fundo muito bem escrita a apelar para a leitura do texto de Antonia Fraser, donde resultou a minha vontade de o fazer.
Terminada hoje essa leitura quero registar alguns tópicos: 1) Se é certo que a interpretação que Coppola faz da personagem se apoia no romance, ainda assim é criativa e não se fica por uma mastigação aborrecida do romance. 2) A crítica de Paulo Portas é rigorosa no modo como valoriza o discurso cinematográfico, e é justa quando enaltece a personagem e apela à necessidade de proceder a outras leituras dentro da leitura, de forma a que possamos reconstruir a figura de Maria Antonieta diferente daquela que a história, os anais da revolução e as “esquerdas” comummente sempre nos “impingiram”. 3) A história de vida, o caso de vida de Maria Antonieta, nos contornos trágicos e dramáticos (ainda à margem do perfil da rainha de França, da 2.ª metade do século XVIII), pode ser visto como um caso patológico do confronto entre princípios e valores acometidos às elites por oposição aos princípios e valores acometidos às massas (seja lá isso o que for).
Navegar de perto e de novo pelos meandros daquela corte em decadência, como visitar os interiores dos domínios reais, as personalidades daquela nobreza faustosa e fútil, as intrigas, jogos e estratagemas tecidos entre a corte e a burguesia de Paris, os modos implicados no protocolo palaciano, a arte do requinte, leva-nos a reflectir sobre o fermento dos conflitos humanos, sobre o fermento das revoltas e das revoluções. No fundo, mais do que a mudança de mentalidades inscrita no Trend, o que os povos realmente desejam é a alternância do poder para propiciar o acesso ao poder, e isto parece-me um tópico bem actual.

Esta afirmação crua e pouco estruturada da minha parte foi ainda consolidada na leitura do livro/catálogo editado em Novembro de 2006 pela Réunion dês Musées Nationaux, com o título Marie-Antoinette: Um destin brisé, da autoria de Évelyne Lever, investigadora especializada no Antigo Regime e na Revolução.
Este catálogo, editado a propósito da “Maria-Antonietomania” que o filme de Sofia Coppola reacendeu, é um testemunho de relevo para a opinião atrás formalizada, quer pelo acompanhamento da época, quer pela cuidada selecção das imagens, quer pela defesa do mito consubstanciado na história de Maria Antonieta, a um mesmo tempo “Messalina”, “Medusa”, “Quimera”, rainha perdulária, depravada, infantil, mãe generosa, esposa paciente e dedicada, mulher incompreendida e insatisfeita, rainha mártir, figura majestática ciente das prerrogativas da sua hierarquia…
Destes contrastes se faz o mito: memória de um tempo mau e também alegre e bom; continuada propagação da lenda negra a solicitar, contudo, uma constante visitação da época e da personagem; discurso histórico sobre uma figura pública que não consegue apagar a realidade da figura humana…
Eis, portanto, o que me leva a sustentar que a história desta mulher é um pouco a história de quem está fora do seu tempo, ou está na charneira do tempo, ou está metido no sarilho do tempo. Maria Antonieta parece ter percebido isso. Será que o percebeu deveras?

[Fonte: Imagem - Reprodução da capa do álbum de Évelyne Lever, Marie-Antoinette: Un destin brisé. Paris, Réunion des Musées Nationaux, 2006. Google]