"AD APERTURAM LIBRI"

terça-feira, 24 de julho de 2007

Maria Antonieta vista por Antonia Fraser e Évelyne Lever

Acabei de ler Maria Antonieta: A Viagem de Antonia Fraser, livro que serviu de guião ao último filme de Sofia Coppola, onde nos é dado o retrato romanceado, contudo histórico e interpretativo, dessa grande e trágica rainha de França.
Quero salientar a qualidade gráfica da edição portuguesa que apareceu em Fevereiro de 2007 na colecção "Mar de Histórias" da "Oceanos", uma chancela da ASA Editores.
Quero salientar, igualmente, a tradução de Irene e Nuno Daun e Lorena que não desvirtua a escrita solta e fluida da autora, mantendo a delicadeza e alegria reflexiva do discurso.
Menos cuidada foi a revisão do texto, já que, por aqui e por ali, aparecem umas gralhas que maculam de menos o todo, e é pena.
Em verdade, vi o filme com grande interesse e, por mim, apreciei bastante a abordagem feita por Sofia Coppola. Depois, li a crítica editada por Paulo Portas, peça de fundo muito bem escrita a apelar para a leitura do texto de Antonia Fraser, donde resultou a minha vontade de o fazer.
Terminada hoje essa leitura quero registar alguns tópicos: 1) Se é certo que a interpretação que Coppola faz da personagem se apoia no romance, ainda assim é criativa e não se fica por uma mastigação aborrecida do romance. 2) A crítica de Paulo Portas é rigorosa no modo como valoriza o discurso cinematográfico, e é justa quando enaltece a personagem e apela à necessidade de proceder a outras leituras dentro da leitura, de forma a que possamos reconstruir a figura de Maria Antonieta diferente daquela que a história, os anais da revolução e as “esquerdas” comummente sempre nos “impingiram”. 3) A história de vida, o caso de vida de Maria Antonieta, nos contornos trágicos e dramáticos (ainda à margem do perfil da rainha de França, da 2.ª metade do século XVIII), pode ser visto como um caso patológico do confronto entre princípios e valores acometidos às elites por oposição aos princípios e valores acometidos às massas (seja lá isso o que for).
Navegar de perto e de novo pelos meandros daquela corte em decadência, como visitar os interiores dos domínios reais, as personalidades daquela nobreza faustosa e fútil, as intrigas, jogos e estratagemas tecidos entre a corte e a burguesia de Paris, os modos implicados no protocolo palaciano, a arte do requinte, leva-nos a reflectir sobre o fermento dos conflitos humanos, sobre o fermento das revoltas e das revoluções. No fundo, mais do que a mudança de mentalidades inscrita no Trend, o que os povos realmente desejam é a alternância do poder para propiciar o acesso ao poder, e isto parece-me um tópico bem actual.

Esta afirmação crua e pouco estruturada da minha parte foi ainda consolidada na leitura do livro/catálogo editado em Novembro de 2006 pela Réunion dês Musées Nationaux, com o título Marie-Antoinette: Um destin brisé, da autoria de Évelyne Lever, investigadora especializada no Antigo Regime e na Revolução.
Este catálogo, editado a propósito da “Maria-Antonietomania” que o filme de Sofia Coppola reacendeu, é um testemunho de relevo para a opinião atrás formalizada, quer pelo acompanhamento da época, quer pela cuidada selecção das imagens, quer pela defesa do mito consubstanciado na história de Maria Antonieta, a um mesmo tempo “Messalina”, “Medusa”, “Quimera”, rainha perdulária, depravada, infantil, mãe generosa, esposa paciente e dedicada, mulher incompreendida e insatisfeita, rainha mártir, figura majestática ciente das prerrogativas da sua hierarquia…
Destes contrastes se faz o mito: memória de um tempo mau e também alegre e bom; continuada propagação da lenda negra a solicitar, contudo, uma constante visitação da época e da personagem; discurso histórico sobre uma figura pública que não consegue apagar a realidade da figura humana…
Eis, portanto, o que me leva a sustentar que a história desta mulher é um pouco a história de quem está fora do seu tempo, ou está na charneira do tempo, ou está metido no sarilho do tempo. Maria Antonieta parece ter percebido isso. Será que o percebeu deveras?

[Fonte: Imagem - Reprodução da capa do álbum de Évelyne Lever, Marie-Antoinette: Un destin brisé. Paris, Réunion des Musées Nationaux, 2006. Google]

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