"AD APERTURAM LIBRI"

quinta-feira, 26 de julho de 2007

"Sophia e Sena: Correspondência, 1959-1978"

Nas pessoas de Mécia de Sena e de Maria Andresen de Sousa Tavares, devemos agradecer aos herdeiros e às famílias de Jorge de Sena e de Sophia de Mello Breyner Andresen o terem concordado em reunir e em publicar um conjunto epistolar desta qualidade que, não sendo propriamente extenso, mergulha a fundo na personalidade e na amizade existente entre estes dois gigantes da Literatura Portuguesa.
O objecto livro que encerra este espólio, trabalho gráfico e paginação de Luís Miguel Castro e Ilídio J.B. Vasco, com a chancela da editora “Guerra & Paz”, é de uma elegância a referir, o que contribui para o prazer desta leitura.
Menos cuidada foi a revisão de texto e a elaboração do “Índice Onomástico” que acompanha a obra, que não é exaustivo, nem compulsa as várias citações dos mesmos nomes em todos os documentos insertos na obra, o que é pena.
No panorama da Literatura Portuguesa, quer as memórias, quer a correspondência, são géneros pouco cultivados, pouco conhecidos, e menos ainda publicados. Avultam uns tantos casos paradigmáticos, contudo, falta-nos aquele lastro que nos auxiliaria a fundamentar e a compreender a tradição e o verdadeiro efeito de época. Por isto mesmo só devemos apreciar e aplaudir o aparecimento em edição fechada da correspondência trocada ao longo de 19 anos entre Jorge de Sena (1919-1978) e Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004).
Passando em revista o conjunto das cartas dadas a público, desde logo ressaltam seis principais aspectos que vale a pena sublinhar:

1) A correspondência captura a realidade do regime político vigente à época, com a polícia política a interferir no curso das missivas entre os dois amigos, levando, inclusive, à perda de algumas cartas, e condicionando a liberdade de expressão de ambos, sendo manifesto o mútuo cuidado em evitar opiniões comprometedoras, chegando Sophia a dar notícia de arresto de correspondência em sua casa.

2) A troca epistolar é caracterizada por um largo espaçamento, quase intermitência, do envio/troca de correspondência, já que não se trata de uma comunicação assídua e harmoniosa, mas trata-se de uma “comunicação dionisíaca”, “elegante”, assumidamente impetuosa, e bastante centrada no ego de cada autor. Basta considerar que, por vezes, num ano, apenas foi expedida uma carta (Sophia – 1965, 1967, 1969, 1970, 1971, 1976; Sena – 1960, 1961, 1963, 1964, 1965, 1968, 1970), ou que, por vezes, anos inteiros são corridos sem que tenham sido expedidas/recebidas cartas (Sophia – 1968, 1973 a 1976, 1977; Sena – 1967, 1973-1976, 1977-1978). Em todo o caso, Sophia parece ser mais insistente e mais regular no envio de correspondência, apesar de ela mesma assumir a falta de tempo, a falta de energia e a falta de serenidade para se dedicar à escrita.

3) Apesar das condicionantes impostas pela situação interna do País, e apesar das condicionantes e das limitações impostas pelo curso da vida pessoal e familiar de cada autor, a correspondência segue o seu curso, espaçada (como atrás dito), mas sem perder o ânimo, nem a “energia atómica” que a gerou − a da amizade séria e pura. Os dois amigos persistem na troca de correspondência, brincando até com as notadas delongas, atrasos e desencontros, procurando comunicar os seus valores mais altos e deixar por terra a ignomínia e as mesquinharias do “caso mental português”. Por isso, lendo estas cartas, aqui e além, deparamos com apontamentos negativos, mas, na maior parte dos casos, Sophia e Sena comunicam em grande estilo sobre temas e sobre assuntos que apenas à esfera da escrita dizem respeito, manifestando um sincero alheamento face aos quotidianos português, brasileiro e americano.

4) Em verdade, quer Sophia, quer Sena, estão sobretudo interessados em partilhar notícias acerca das suas respectivas obras, estão interessados em manter acesa a chama da amizade poética, mais do que interessados em dar notícias pessoais de si ou dos seus. As referências às casas, aos esposos e às respectivas famílias, se bem que sejam constantes, sentimos que não estão no centro, e sentimos que esta é uma correspondência entre dois seres superiores, brilhantes, que comunicam num discurso singular, onde o não dito vale pelo dito e vice-versa. Há mesmo uma reserva da intimidade, escusada apenas em expressões cerimoniosas e de cortesia como saudações e cumprimentos, etc. É até curioso constatar como Sophia se insurge contra Sena pelo facto de Sena ter “sugerido” que ela e marido formavam um “casal conspícuo” (Sena - carta datada de 2 de Dezembro de 1971, op. cit. pp.119-122; Sophia – carta datada de Fevereiro de 1972, op. cit. pp.122-124).

5) Sena é senhor da grandeza e da dignidade da sua obra literária. Está perfeitamente consciente que os seus trabalhos de investigação, que as suas traduções e que o seu esforço em prol da divulgação da cultura portuguesa lhe deviam garantir preeminência. É muito isso que transparece no modo altivo como critica a classe dos “eruditos nacionais”, ou no modo displicente como vai dando notícia dos títulos que tem no prelo, ou dos trabalhos que tem em mãos, etc. Ainda aqui se prova a alta temperatura da amizade existente entre estes dois autores já que Sophia não acusa algum melindre e é sempre leal para com o seu amigo.

6) Sophia, por sua vez, é tenaz na defesa do seu classicismo e do seu ideário grego, contestando Sena, impondo-lhe a verdade formada pela experiência das suas viagens à Grécia, defendendo valores numa escala humana por oposição à espiritualidade de Sena. Nesta matéria Sophia não se deixa intimidar pela genialidade do grande mestre que é Sena. Critica-o, e critica-lhe o curso das letras quando sente que Sena aponta caminhos áridos de crítica social, apenas por azedume. Sophia é sempre igual a ela mesma, genial, sintética, apaixonada, limpa, de palavra luminosa, e é por isso que sofre como ninguém o apagamento do seu amigo em 1978. Sophia parece saber que, com a morte de Sena, o Mundo ficava mais estreito para ela.

Portanto, esta é uma correspondência muito bela, plena de ensinamentos, plena de bom-nome e sã memória.

[Fonte: Imagem – Capa do livro Sopia de Mello Breyner e Jorge de Sena, Correspondência: 1959-1978. Lisboa, Guerra & Paz, 2.ª ed., 2006. Google]

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