"AD APERTURAM LIBRI"

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Arménio Vieira na Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, em 2007


Ao organizar os apontamentos para me lançar na redacção desta breve crónica dou comigo a lembrar-me de imagens soltas, profundamente poéticas, que me fazem sentir melhor a especialidade de um dos poemas que o poeta Arménio Vieira leu na Casa Fernando Pessoa, no passado dia 26 de Junho, precisamente, o poema “Lisboa − 1971”.
Quando em criança viajava para a aldeia dos meus avós, certo era que a partir de Coimbra, e por toda a estrada da Beira, a minha mãe, emocionada com a fundura da paisagem, ia dizendo ao acaso: “ditosa pátria minha amada”. Havia e há neste verso força capaz de congregar uma nação.
Eu creio que a “Lusofonia” é sobretudo um território de sentimento (a par da Língua), mais do que um território de conhecimento mútuo.
Sejamos francos! Quantos de nós conhecemos o essencial da Poesia de cada espaço lusófono? Quantos de nós conhecemos as novas vozes presentes nesses espaços, ou aquelas vozes tutelares responsáveis pela transmissão das bandeiras de cada geração? Poucos. Muito poucos.
Afirmo isto, admitindo desde já que eu próprio, viajante em Cabo Verde, para além da obra de Eugénio Tavares, António Pedro, Jorge Barbosa, Germano Almeida e José Luís Tavares conheço quase nada.
Arménio Vieira apareceu-me como uma revelação. Poeta nos modos e nos gestos, sobremaneira silencioso, metido consigo mesmo, na Casa Fernando Pessoa sustentou um debate curioso em torno das questões identitárias que se colocam à actual Literatura Cabo-verdiana, dando resposta pronta àqueles que o interpelaram.
Nascido na cidade da Praia (ilha de Santiago, Cabo Verde), em 29 de Janeiro de 1941, Arménio Vieira cresceu e fez-se homem sob a égide do “império”, para se afirmar depois como bandeira da independência de Cabo Verde, tido por modelo para o conjunto dos poetas mais novos, maioritariamente, residentes fora daquele Arquipélago.
Em simples pinceladas direi que a poesia de Arménio Vieira traduz esta mesma realidade existencial: combativa, ácida, paternal numa primeira fase; desencantada, vaga, irónica, universal (fazendo sua a espiritualidade atlântica e mediterrânica), num tempo em que, conquistada a independência, mesmo assim não foram quebrados todos os grilhões, os mais pesados, “aqueles que são postos pelos de dentro”.
Infelizmente a obra deste poeta não está acessível em Portugal, já que existem poucos títulos disponíveis. Em Lisboa, na Casa Fernando Pessoa, era para ter sido apresentado o último título de Arménio Vieira, Mitografias, editado pela Ilhéu Editora, mas, por razões alheias os exemplares do livro não chegaram a tempo de o mesmo ser apresentado ao público.
Então, adquiri o livro Poemas, obra reeditada pela Ilhéu Editora, onde li pela primeira vez este poeta, defrontando-me com poemas marcantes como “Toti Cadabra” (pp.14-15), “Lisboa − 1971” (p.17), “Os Amorosos” (p.40), “Viagem, Rima e Fantasia” (pp.44-45), “Caviar, Champanhe & Fantasia” (pp.46-48),”Sísifo” (pp.65-66), “Glosa ao Poema de Passarem Aves” (p.105), “Se…?” (p.119), além de outros.
De todos estes poemas alcançou-me, como disse, o poema “Lisboa − 1971”, sobretudo a quadra que diz:
(…) E quando mais tarde surpreendemos o espanto / da mulher que vendia maçãs / e queria saber d’onde… ao que vínhamos / descobrimos o logro a circular no coração do Império. (…).
Alcançaram-me estes versos talvez porque também eu, noutro tempo, habitei em outras “latitudes do império”.
Mas este poema, assim o desejo, é um poema triste e datado. Datado de um tempo em que as línguas se confundiam como na Babilónia. Hoje, assim o desejo, vale muito mais a “mensagem” de Fernando Pessoa quando expressa nos poderosos versos do poema “O Infante”:
(…) Quem te sagrou creou-te portuguez. / Do mar e nós em ti nos deu signal. / Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez. / Senhor, falta cumprir-se Portugal! (Fernando Pessoa, “O Infante”, in Mensagem. Lisboa, Ática, 1945; p.51).
Pois, em vozes distintas, e em tempos diversos, surge-nos o tema do “império”, que nestas poéticas, e na nossa leitura, não é o “império de posse e de domínio” mas o “império da Língua comum”, da Língua que deveríamos cuidar em comum, verdadeiro talismã para os tempos mais difíceis que hão-de vir.
Deste modo, a realização desta “Quinzena da Cultura Cabo-verdiana” na “casa de Fernando Pessoa” foi de todo pertinente e ajudou à construção de uma dimensão superior já que embora de Múltiplas folhas, o poema é só um (Arménio Vieira, “Hai-Kais”, 5, in Poemas. Mindelo, Ilhéu Editora, 1998; p.121).

Bibliografia de Arménio Vieira:
Poemas. Lisboa, África Editora, 1981.
O Eleito do Sol. Praia, Edição Sonacor, 1990.
Poemas [reedição]. Mindelo, Ilhéu Editora, 1998.
No Inferno. Praia e Mindelo, Centro Cultural Português, 1999.
Mitografias. Mindelo, Ilhéu Editora, 2005.


[Fonte: Imagem – Arménio Vieira tomando uma bica no café Cachito, Praia. Fotografia de Conde. Google]

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