"AD APERTURAM LIBRI"

quinta-feira, 26 de julho de 2007

"África minha" de Eduardo Pitta (1949)

Um cão de angústia progride / na cidadela sitiada / enquanto te demoras / no sorvo / no arquejo largo / no topo da saliva / enquanto te entreabro / as pernas altas / enquanto de humedeço / o musgo tenro / para te ferir com a boca / cheia de vidro moído (Eduardo Pitta, “Enquanto Te Demoras”, in Sião. Lisboa, Frenesi, 1987; p.167).

Desde 1987 que este níveo poema de Eduardo Pitta me acompanha porque nele se adianta todo um vagar de vivências e de experiências que não é muito comum descortinar em poesia.
Poema de uma fase antiga (data de 1979), é pela própria voz do seu autor classificado como destoando de uma unidade orgânica conseguida depois de 1984 com a publicação do título Olhos Calcinados (op. cit. p.167).
Sempre me importou pouco a anotação sobre os poemas. Sempre escolhi ler e reter os poemas que me fizeram vibrar em um dado momento. É o caso deste poema, primeira janela para um tal vagar.
Passaram anos sem que procurasse outras leituras deste autor. Só mais recentemente voltei a Eduardo Pitta, quer nas suas crónicas em periódicos, quer nas suas intervenções na Casa Fernando Pessoa, quer no seu
www.daliteratura.blogspot.com.
Portanto, foi à procura de algo que decidi adquirir na Feira do Livro de Lisboa os títulos Persona e Cidade Proibida, ambos editados pela Quidnovi, com uma qualidade gráfica inquestionável.
Não venho agora dizer nada de novo a propósito destes dois textos, até porque outros mais competentes já o fizeram, nomeadamente, Helena Vasconcelos que, no suplemento Ípsilon, do Público, nos deu uma crítica certa e segura sobre o alcance destas obras e o trabalho do autor.
A mim, apetece-me muito mais deixar fluir os raciocínios ao sabor dos sentimentos, sem querer com isto valorizar, ou desvalorizar, cada uma das obras.
Cidade Proibida, romance publicado em 2007, assume-se como história de género, trama actual e familiar a decorrer em ambientes luxuosos de uma certa estirpe. O romance toca nas feridas de todo o Amor, no caso, recortando ainda a delicadeza e o melindre do Amor homossexual, habitualmente vivido “às escuras”.
A propósito da relação entre Martim e Rupert (tema central do romance), o autor visita os lugares comuns da hipocrisia social e da rotina sexual de todas as famílias (porque em todas as famílias há dessas coisas). A qualidade da escrita de Eduardo Pitta é ainda enriquecida pelo toque psicológico que consegue instilar em cada personagem, atirando o leitor para o drama patológico dos vários casos (Nora e a compreensão/conivência de Nuno Lemos Fortunato; Rupert e aquela forma de “incesto”/”abuso”/”iniciação”/”atracão” exercida por Mark; etc.).
É um “romance estético” que podemos associar a uma certa tendência de escrita actual e cosmopolita (David Leavitt, Bret Easton Ellis, Frederico Lourenço, etc.), que valoriza ao mesmo tempo a economia no relato da acção e o requinte barroco na descrição de ambientes, adereços, peças-âncora, peças-símbolo na construção do universo em estudo (no caso, o universo “gay” e elitista de Lisboa).
Persona (1.ª edição em 2000), é uma história repartida em três contos, onde um mesmo personagem evolui ao fiar do tempo “cronológico” e “escatológico”, crescendo na sua identidade, crescendo para as suas opções, crescendo sem cair no ridículo da triste sociedade que o rodeia, a mesma sociedade em fim de festa colonial.
À semelhança daquilo que já havia sentido em relação aos trabalhos poéticos de Eduardo Pitta, também agora me senti mais atraído por este título do que pelo anterior. Por vezes, quase senti que o autor foi mais feliz e original na construção destes contos/romance do que na imaginação da Cidade Proibida.
Há uma verdade pura e didáctica nos três andamentos desta obra, e há uma paixão (desculpem-me, prefiro dizer tensão/tesão), em crescendo, e que culmina nas vésperas do descalabro com a entrega de José à “felicidade arco-íris”, uma vez passado à peluda.
Em Kalahari, fazemos a viagem da entrega total, que passa pela fuga, pelo jogo do ciúme e pela submissão à majestade do deserto e à força física de Ralph Rylands.
Em Pesadelo, é o embuste do sistema que é evidenciado. O colonialismo português já nada mais podia numa terra revoltada, e a bela sociedade gozava o lirismo de se saber superior e livre num território imenso e matricial, semelhante ao da atracção dentro do mesmo sexo, onde a possibilidade e o prazer derivam da oportunidade e da solidão (sensações amplificadas em África).

[Fonte: Imagem – Reprodução da capa do livro de Eduardo Pitta, Cidade Proibida. Lisboa, Quidnovi, 2007. Google]

Sem comentários: