"AD APERTURAM LIBRI"

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Pelos "Campos de Níjar", com Juan Goytisolo (1931)

Se tivesse que caracterizar o sul em três palavras citaria seguramente as barbearias, junto às crianças e às moscas (Juan Goytisolo, Campos de Níjar. Barcelona, Mondadori, 1993; p.61). É com esta claridade e com esta dureza que o escritor resume os sentimentos experimentados durante a sua viagem pelo sul de Espanha, num perímetro delimitado pelos lugares de Almería, Níjar, Carboneras, Las Negras, Rodalquilar, Morrón de los Genoveses e El Cabo de Gata, nos idos de 1959.
Nesta espécie de “diário de viagem” Goytisolo traça em riscos largos o retrato de uma Espanha quixotesca, que sabemos, felizmente, mudada há muito.
Apaixonado pela paisagem árida, inóspita e grandiosa desta terra lunar e infernal, povoada de lugarejos sujos, poeirentos e esquecidos, Goytisolo busca a poética do Sul e o imaginário daquelas nobres gentes exploradas e esperançosas.
Em quadros de abandono e de miséria consentida e calada, o autor, descreve o dia a dia da vertiginosa carreira à boleia pelas estradas sinuosas, onde a meio do nada, pintadas sobre o ocre dos muros derrubados, o assaltam as palavras de propaganda do regime franquista ao "Generalíssimo" (op. cit. P.22).
Estranha e ritual é esta peregrinação de um catalão exilado em França que se dispõe a descer ao sul para mergulhar nas aventuras e desventuras do povo que ali resiste e que se sente escravo do tempo que parece que não passa, que sofre a secura transtornada por chuvadas de lama, e que aceita o “feudalismo” ainda ali prevalecente e que tinha nos “civis”, nas “brigadas”, nos “curas”, nos “amos”, nos “patrões” os pilares da “ordem estabelecida”.
Num registo algo semelhante ao de Jack Kerouac (1922-1969), também Goytisolo faz o seu percurso “on the road”, se bem que não há romance nestas páginas, e o discurso não é feito de costa a costa no casulo fechado de um drama interior. Pelo contrário, Goytisolo é muito mais o antropólogo que mergulha num modelo social arcaico e cristalizado.
Goytisolo não viaja em demanda do descanso ou do prazer, não viaja em demanda das praias paradisíacas do Golfo de Almería, procura, outrossim, internar-se nos segredos dessa humanidade que frutifica nos antípodas da Europa do norte e do meio-dia, onde a Liberdade e o Progresso eram dados assumidos à época.
Por isso, é com tristeza e descrédito que Goytisolo ironiza a propósito da “célebre teoria da revolta de massas” do grande Ortega y Gasset, já que este ilustra a sua teoria a partir da “revolta de Níjar”, ocorrida a 13 de Setembro de 1759, quando Carlos III subiu ao trono de Espanha. Para Ortega y Gasset, a esse povo revoltado pertenceria sempre a Liberdade.
Contudo, era outra e bem diferente situação a que se vivia por ali em 1959. Não, o povo não tem mais remédio que resignar-se, porque a iniciativa da mudança, como a atitude magnânima, foram, e serão sempre, apanágio das minorias [das elites] (op. cit. pp.56-57).
Desta forma, embora “a salto”, “à boleia”, solitário e desprendido, Goytisolo progride na viagem e no relato com uma atinada lucidez política, deixando-nos viajar com ele através do universo caloroso do sul, através dos povoados luminosos, deixando-nos participar na fábula humilde, mas violenta, dos homens com quem cruzou diálogo.
Para a posteridade ficou este relato autêntico de um lugar e de um tempo que já então parecia absurdo.
Ler este livro é confirmar a História que parece mentira, é recuperar a memória e acordar a consciência, porque nada do temos é seguro ou adquirido.
A cama é boa para quem tem o estômago cheio e sabe que no dia seguinte não haverá de lhe faltar o necessário, podendo ir de um sítio a outro sem ser escravo em nenhum, e ver as coisas de fora, como um espectador alheio ao drama (op. cit. P.57).

[Fonte: Imagem – Juan Goytisolo. Fotografia de Sergio Caro. Google]

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